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Marília Mendonça era mulher poderosa e que empoderava outras

Marília Mendonça era mulher poderosa e que empoderava outras

access_time 3 anos ago

Nesse tempo de tantas partidas abruptas, lá se foi a menina de Cristianópolis, que tocava um violão de encher os olhos, que compunha canções com que milhões de pessoas se identificavam, que sonhou e realizou muitos de seus sonhos

Ô, vida, que pressa é essa? Que coisa atabalhoada, injusta! Há momentos em que a gente até acha que de tanta urgência, você se engana e acaba antes da hora. Espera um pouco, vida! Que negócio é esse de ir findando para alguém que só tem 26 anos, que está com uma criança de só dois aninhos em casa a esperando, com tanto ainda a percorrer por esse mundo que ela conquistou? Por quê? Qual o sentido dessa ânsia? Quem pode dizer, afinal… E nesse tempo de tantas partidas trágicas, abruptas, cotidianas, lá se foi a menina de Cristianópolis, que tocava um violão de encher os olhos, que compunha canções com que milhões de pessoas se identificavam, que sonhou e realizou muitos de seus sonhos.

Nos vídeos caseiros que circulam na internet com seus primeiros tempos de compositora ou nas grandes produções de shows e clipes, o sorriso de Marília Mendonça se destacava. Mas não era só um sorriso carismático e com certa timidez. Era um sorriso pleno, nos mais variados aspectos. O terrível acidente aéreo ocorrido ontem nas proximidades da cidade mineira de Caratinga, onde a cantora faria um show na noite de sexta-feira, interrompeu muito precocemente a vida dessa goiana que ignorou fronteiras. Também calou a voz de uma mulher poderosa – e que empoderava outras. Era uma quebra de paradigma num nicho, o sertanejo, tradicionalmente dominado por homens. Ela inverteu essa ordem.

Trincar paradigmas era com ela mesma. Marília começou compondo e seus trabalhos foram sucesso nas vozes, por exemplo, do cantor Cristiano Araújo e da dupla Henrique & Juliano. Em 2015, ela resolveu que era hora de entoar suas próprias canções. Alguns comentaram: “mas essa moça é cheinha, né?” Marília não escondeu suas formas e falava disso com humor, mas com contundência. Ao ouvir uma brincadeira do apresentador Fausto Silva, que gostava de chamá-la de gordinha, Marília respondeu certa vez: “Você vive me chamando de gordinha, mas me chamar para comer pizza na sua casa, você não quer, né.” Depois ela emagreceu um pouco – “por motivos de saúde” – mas o recado estava dado.

Recados que ela passava em suas músicas. Em seu primeiro hit, Infiel, ela alertava a amante de um namorado que, dali em diante, o problema com aquele traste era com a outra: “Tá na sua mão, você agora vai cuidar de um traidor”. A narrativa, nas músicas de dor de cotovelo ou da sofrência – afinal, ela recebeu o título de rainha do gênero – passava para as mãos das mulheres. Já em Amante Não Tem Lar, a mulher queixa-se da discriminação que sofre por conta da situação. Em Troca de Calçada, Marília homenageou as prostitutas, sempre tão desprezadas: “não aponte o dedo, não julgue tão cedo, ela tem motivos para estar desse jeito. Isso é preconceito”. Ela pede mais respeito e menos apedrejamentos.
Foi uma carreira curta, mas peculiar em muitos sentidos. Ela conseguiu um trânsito raro entre artistas de vários gêneros e gerações. Gal Costa a convidou para gravar uma faixa do álbum A Pele do Futuro, dando a uma canção da sofrência um arranjo inspirado na black music dos anos 1970. Na gravação, Marília sorri como uma fã diante da musa da MPB. E Gal mostra admiração pela sua parceira de dueto. Esse olhar que ela teve a capacidade de cativar, com talento e simplicidade, em tantos artistas. Com Anitta, ambas atestam: “Some que ele vem atrás”. Num show em São Paulo, dividindo o palco com Ivete Sangalo, ela ouve a colega baiana declarar: “A gente te ama muito, Marília!” E a multidão ovaciona.

Seu último projeto foi com a dupla Maiara & Maraísa, com quem gravou alguns discos. Uma das faixas de um deles, chamado Patroas, é Não Aprendi Dizer Adeus, canção que marcou a despedida de Leandro, outro ícone sertanejo. Quando a pandemia de Covid começou, ela foi uma das primeiras artistas a fazer uma live e bateu recorde mundial no YouTube, com mais de 3,3 milhões de visualizações simultâneas. Tinha um Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Sertaneja e foi a cantora mais acessada em plataformas de streaming por dois anos seguidos, ultrapassando o número de fãs dos Beatles no Spotify. Foi ainda uma das artistas mais ouvidas nas rádios e tinha milhões de seguidores em redes sociais.

O impacto de sua morte é imenso. O momento de seu desaparecimento recorda outras tragédias que ceifaram artistas que estavam no topo, como os Mamonas Assassinas, Cristiano Araújo ou Gabriel Diniz, todos vítimas de acidentes que dão uma dimensão ainda mais trágica a esses destinos que aprendemos a acompanhar, a pessoas que, a exemplo de Marília Mendonça, compartilhava seu cotidiano, seus gostos, suas ideias. Em seus perfis na internet, a cantora sempre se mostrava uma pessoa de alto astral, mas que lidava com os perrengues do cotidiano, numa ligação direta com seu público. Por isso esse sentimento de orfandade para tanta gente. Ô, vida, que pressa é essa? Espera um pouco, vida!

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