Número de acusações de irregularidade em ingresso de cotistas aumentou 8 vezes no ano passado, em parte por maior visibilidade de equívocos e fraudes de selecionados

Por: Márcio Leijoto

O número de denúncias contra estudantes que ingressaram na Universidade Federal de Goiás (UFG) por supostamente não se enquadrarem no perfil exigido no sistema de cotas raciais foi oito vezes maior em 2018 em relação ao ano anterior, passando de 6 para 48 casos investigados. Entretanto, a comissão responsável por apurar as acusações já arquivou 11 processos considerados improcedentes. Em apenas um caso, foi considerado que o aluno não era nem negro nem pardo e ele foi afastado da instituição. Outros 37 processos seguem em aberto, somando-se a outras duas denúncias de 2017 que ainda estão na fase de recursos.

A principal confusão, tanto por parte de quem se matricula pelo sistema de cotas raciais como por quem denuncia, é definir quem pode se autodeclarar pardo. A maioria das denúncias é de problemas com essa classificação. Até 2016, não havia nem no edital de seleção nem no documento de autodeclaração quais os critérios para a pessoa se declarar negra e parda. Só a partir de 2017, com o crescimento de denúncias e descobertas de fraudes e/ou confusão por parte dos candidatos, que a UFG passou a incluir no processo que a confirmação se daria por características fenotípicas (físicas), como tipo de cabeço e formato do nariz ou dos lábios.

Casos de fraudes mais evidentes, como o ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que ganhou repercussão nacional, e, em Goiás, com a história de uma estudante que foi impedida de se matricular na UFG no ano passado por não ter sido considerada parda pela comissão avaliadora, que também teve destaque na mídia, reforçaram o trabalho de coletivos de universitários ligados a movimento negro para “fiscalizar” informalmente quem é aprovado pelo sistema de cotas. A maior parte das denúncias que chegam à instituição seriam destes coletivos.

“Queremos que o sistema de cotas seja usado da forma correta, que seja uma porta de entrada para universidade para aqueles que não teriam condições pela concorrência geral. Não quer dizer que todo mundo fraudou, que tem crime, mas é importante que haja mudanças na lei para definir melhor quais os critérios de ingresso, o que é ser negro ou pardo”, explicou um aluno que integra um destes coletivos e que apresentou algumas denúncias em 2018. Ele pediu para não ser identificado por medo de represálias.

Atualmente, as comissões das universidades que avaliam a validade das autodeclarações se baseiam em decisões de outras instituições, orientações do Ministério da Educação e da Justiça e até mesmo de critérios usados em concursos públicos, com o envolvimento do movimento negro. Isso porque a lei federal 12.711, a Lei das Cotas, instituída em 2012, e o decreto 7.824, publicado no mesmo ano para regular a lei, não especificam critérios para uma pessoa ser considerada negra ou parda.

A partir daí, muitos candidatos se diziam negros ou pardos não por características fenotípicas, mas por terem pais, avós ou alguma ascendência mais distante negra, o que segundo membros da universidade e do movimento negro ouvidos pela reportagem, não significa necessariamente que possam ser identificados como pardos.

A questão do pardo ainda está longe de ser resolvida. O Ministério Público Federal em Goiás (MPF-GO) e grupos dentro da UFG defendem que o termo seja retirado do sistema de cotas. E há quem fale em se usar o termo “não-branco”.

Seleção passa por reforço

Desde 2016, quando a Universidade Federal de Goiás (UFG) criou a Comissão de Verificação de Autodeclaração, ligada à Coordenadoria de Ações Afirmativas, para verificar o ingresso dos estudantes pelo sistema de cotas raciais, o grupo que integra a comissão trabalha para aperfeiçoar o processo de seleção, evitando confusões e fraudes pelos candidatos. Até 2017, a verificação se dava apenas por meio de denúncias. O ano passado foi o primeiro em que a comissão passou a avaliar as autodeclarações no momento da matrícula. Foram impedidos de ingressar na universidade 375 dos 2099 candidatos selecionados pelo sistema de cotas raciais, o que equivale a 17,8% do total.

Os candidatos que se inscreverem para uma vaga na UFG pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) nesta semana, por exemplo, já receberão orientação sobre critérios de definição de preto, pardo e indígena para a autodeclaração ser aceita. No ano passado, membros da comissão, que mudou de nome e passou a ser Comissão de Heteroidentificação, visitaram escolas públicas para esclarecer dúvidas e conscientizar estudantes.

No caso das denúncias de alunos já matriculados, o presidente da comissão, Pedro Cruz diz que nas entrevistas com os denunciados são analisadas não apenas as características fenotípicas como relatos de vivência do aluno, para saber se em sua rotina ele se reconhece como pardo ou negro. Cruz diz que um dos objetivos das cotas raciais é selecionar estudantes que em seu cotidiano sofreram preconceitos que dificultaram o acesso deles ao ensino superior. Cruz conta que a comissão está sendo ampliada neste ano e que a instituição tem dialogado cada vez mais com o movimento negro para que os critérios sejam aperfeiçoados.

“Me senti num tribunal racial”

Um estudante da Universidade Federal de Goiás (UFG) denunciado no ano passado por supostamente não ser pardo, como se autodeclarou para ingressar no sistema de cotas raciais, diz que se sentiu em uma espécie de “tribunal racial” ao ter de explicar porque se considerou pardo. “Eu tenho cabelo crespo, meu nariz é achatado e minha família (por parte de mãe) é negra. Nasci com a pele clara e por um tempo tenteu alisar o cabelo, não me identificava como pardo, mas fui crescendo e minha visão sobre isso mudou. Minha tia foi muito importante nisso”, contou o estudante, que pediu para não ser identificado. O caso dele é uma das 37 denúncias ainda em fase de recursos na UFG. O aluno diz que foi reprovado pela comissão e perdeu os recursos até então. Não há prazo para o processo dele se encerrar.

Tanto a professora Marlini Dorneles, coordenadora de Ações Afirmativas da UFG, como o presidente da Comissão de Heteroidentificação, Pedro Cruz, dizem que a maioria dos casos investigados pela comissão são de alunos que se declaram pardos e que há muita confusão sobre esse termo, tanto por parte de quem denuncia como de quem ingressa no sistema. “A comunidade está mais atenta a esta situação e busca melhorar o sistema de seleção, fazendo com que ingresse na universidade realmente quem se enquadra. Não acho que seja caso de perseguições ou resistência, porque na comunidade já existe um consenso sobre aimportância do sistema de cotas”, comentou Cruz.